CARPE DIEN

domingo, 26 de abril de 2009

3ªS SÉRIES - CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES

3ª séries (segundo bimestre)




Especial – REVISTA VEJA
Edição 1903 . 4 de maio de 2005


Choque de civilizações


Passados quase 1 000 anos de sua realização,as Cruzadas são um símbolo do confronto entreOcidente e Oriente. Novas pesquisas históricaslançam luz sobre o evento e desfazem mitos,enquanto uma superprodução cinematográfica,dirigida por Ridley Scott, recria a luta por Jerusalém no ano de 1187 Isabela Boscov, de Los Angeles






GUERREAR PARA TER PAZ


O inglês Orlando Bloom, como o cavaleiro Balian de Ibelin: o cristão lutou só o suficiente para levar o sultão Saladino até a mesa de negociações

"Não foi por Deus que viemos aqui. Foi pela terra e pela fortuna", diz um cavaleiro, com amargura, numa cena do filme Cruzada. A frase não resume apenas muito do sentimento ocidental e também muçulmano para com as Cruzadas medievais. Basta trocar "Deus" por "democracia" e "terra" por "petróleo" para que ela passe a funcionar como uma síntese da visão popular, a Leste e a Oeste, do atual conflito no Iraque e das tensões entre o mundo ocidental e o islâmico. O cineasta inglês Ridley Scott, de Gladiador, sabe que esse processo de substituição do passado pelo presente será inevitável a partir da próxima sexta-feira, quando seu Cruzada estréia em circuito mundial. Scott, porém, espera que ele se torne não motivo de discórdia, mas que ajude a promover algum entendimento (além, é claro, de recuperar o investimento de 130 milhões de dólares do estúdio Fox).


A Cruzada se passa em 1187, quando o sultão Saladino, à frente de 200.000 soldados, cercou Jerusalém – então a sede do Reino Latino do Oriente – e retomou-a dos cruzados, que estavam estabelecidos ali havia quase nove décadas. Muito sangue foi derramado nessa operação – e muito mais sangue ainda deixou de ser derramado graças à inteligência e à diplomacia com que Saladino e o cristão Balian de Ibelin, que liderou a resistência de Jerusalém (e, no filme, é interpretado pelo astro em ascensão Orlando Bloom), negociaram essa transferência de poder. Para historiadores como Carole Hillenbrand, da Universidade de Edimburgo, uma das maiores estudiosas do lado muçulmano das Cruzadas, o ano de 1187 é o símbolo de uma grande oportunidade perdida: uma trégua que, por muito pouco, não se tornou permanente, mudando assim o curso da história no Oriente Médio. É dessa maneira também que o filme mostra esse momento – como uma utopia, infelizmente fugidia, de convivência entre civilizações.





"DEUS O QUER"


Cavaleiros partem em combate contra o sultão Saladino: um conflito que poderia ter terminado de vez e de fato em 1187


Durante as Cruzadas, as tréguas foram em geral poucas e curtas – como essa mostrada no filme, entre a segunda e a terceira expedições –, porque novos cavaleiros estavam sempre chegando do Ocidente e renovando a animosidade contra os muçulmanos, a despeito de sua inferioridade numérica e militar. Não há censo confiável, mas calcula-se em 1 milhão as baixas entre os cristãos e o mesmo tanto entre os muçulmanos. No fim do século XIII, quando o ciclo se encerrou, o vitorioso foi o Islã, que conseguiu expulsar todos os cruzados de seus domínios. Hoje, quase 1.000 anos depois, a sensação que ocidentais e muçulmanos têm – e que um e outro lado alimentam e propagam ao sabor das conveniências – é a de que o Islã foi o grande perdedor do movimento deflagrado pelos papas católicos. A trajetória simbólica das Cruzadas é diversa no Ocidente e no Oriente, mas em ambos tem uma relação igualmente conflituosa com a realidade dos fatos ocorridos na Idade Média. Há muito que aprender, entretanto, ao observar-se o percurso dessas transformações: elas formam uma crônica fascinante de como idéias, palavras e percepções pesam tanto no destino das civilizações quanto suas riquezas, sua estrutura social e seus regimes políticos.


O termo "cruzada" é, hoje, corrente nos idiomas ocidentais. Dizemos que os americanos estão envolvidos numa cruzada contra o tabagismo, ou que as polícias empreendem uma cruzada contra elementos corruptos em seu interior. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, porém, ele consolidou seu caráter de palavrão ideológico. É empregado com absoluta falta de sensibilidade – como quando o presidente George W. Bush declarou "uma cruzada contra o terrorismo", tingindo uma luta legítima com tonalidades antiislâmicas – ou com total deliberação, como a cada vez que Osama bin Laden anuncia em seus vídeos que o sangue dos cruzados cobrirá novamente a espada de Saladino. O curioso, porém, é que o termo deve sua força mais às empreitadas coloniais e imperialistas dos séculos XIX e XX do que aos eventos da Idade Média. Até as potências européias começarem a ocupar o Oriente, em meados do século XIX, essas emoções estavam, de certa forma, dormentes – e a língua árabe não registrava sequer um termo específico para "cruzada" ou "cruzados", valendo-se do genérico "francos" (foi da França que partiu a maior parte das expedições medievais). Hoje, usam-se duas frases: "guerras cruzadas" e "ataques cruzados". Quase sempre, em contextos em que se fala de intrusões ocidentais, tanto militares quanto culturais ou políticas.


O enorme poder simbólico das Cruzadas para os árabes do presente foi insuflado com a ajuda decisiva dos próprios colonialistas, que adoravam usar imagens do período medieval para caracterizar suas conquistas. Ao entrar em Jerusalém pela primeira vez em sete séculos com um exército cristão, em 1917, o general inglês Edmund Allenby teria declarado que "agora, sim, as Cruzadas terminaram". A revista inglesa Punch, então popularíssima, não perdeu tempo em retratá-lo como Ricardo Coração-de-Leão, o maior herói cristão das Cruzadas, numa caricatura célebre – e também das mais ofensivas aos sentimentos árabes. Para Carole Hillenbrand, não é de estranhar, portanto, que os palestinos dos dias de hoje, em guerra pelo território em que cristãos e muçulmanos se enfrentaram há quase 1.000 anos, se vejam como parte desse mesmo conflito.


Um dos efeitos mais claros das Cruzadas foi o de levar o Islã a fechar-se em si mesmo. Daí, nos séculos XIX e XX, ele ter se ressentido duramente por ser invadido não apenas por colonialistas e imperialistas, mas também por uma retórica medieval que invocava vingança e retribuição. É essa retórica que, forçada pela garganta do mundo árabe, foi digerida por ele, transformada, globalizada e, desde os anos 70, ajuda a alimentar ódios e tensões. Episódios como o do banho de sangue que foi a primeira tomada de Jerusalém, em 1099, quando os cristãos massacraram os muçulmanos, são relembrados não como uma cena em que os atores principais estão mortos. São rememorados como o primeiro ato de uma guerra que não acabou, nem nunca deixou de existir.
Por muito tempo, porém, o Ocidente praticamente não existiu nos pensamentos dos muçulmanos – e não havia mesmo razão para que os orientais se ocupassem dele.


Desde o século VII, o Islã vinha alargando suas fronteiras a passos rápidos. Às vezes pelo fio da espada, mas mais comumente pela simples adesão à fé do profeta Maomé. Os muçulmanos estavam estabelecidos no sul da Espanha e na Sicília, de onde os cristãos já começavam a desalojá-los. A leste, haviam englobado uma porção do que antes fora a Cristandade – inclusive Jerusalém, ocupada em 638. Mas as linhas fronteiriças com o mundo cristão eram estáveis. Não havia nelas, no geral, um estado de guerra. Boa parte do crédito cabe ao Islã, que praticava a tolerância religiosa e mantinha Jerusalém aberta "às três fés de Abraão" – o islamismo, o cristianismo e o judaísmo. No século XI, porém, a balança pendeu de vez para o lado do conflito armado. Tribos nômades de turcos seljuk – que, na verdade, estavam mais interessadas em conquistar território para seus rebanhos do que em fazer a jihad, ou guerra santa – abocanharam toda a Ásia Menor (a moderna Turquia), que fora cristã desde o tempo de São Paulo, reduzindo o Império Bizantino quase que só à Grécia e à Constantinopla (hoje Istambul).

O imperador de Bizâncio pediu socorro, e foi ouvido por uma Europa que atravessava um momento peculiar: uma Europa em crescimento populacional e econômico, repleta de energia, mas também aterrorizada pela idéia do fim do mundo, a qual fez redobrar o valor da penitência e da purificação.


Quando, em 1095, o papa Urbano II atendeu ao apelo do imperador com um chamado para as Cruzadas, as metas que ele estabeleceu pareciam razoáveis: recuperar os locais sagrados do cristianismo e garantir a passagem de peregrinos para a Terra Santa. Quem tomava a cruz para socorrer assim seus irmãos ganhava em troca a salvação. "As Cruzadas eram travadas por voluntários. E seria muito difícil persuadir centenas de milhares de homens a embarcar numa empreitada que eles vissem como imoral", disse a VEJA Jonathan Riley-Smith, titular da Universidade de Cambridge e o estudioso do tema atualmente mais citado em todo o mundo. Está aí, porém, um dos nós que dividem os estudiosos: até que ponto a Igreja manipulou essa ferramenta tão útil que acabara de inventar, exagerando o perigo que a fé cristã corria, para fazer uma ofensiva contra os muçulmanos. Enquanto alguns historiadores enxergam a expansão do Islã como uma agressão inequívoca contra a Cristandade, outros argumentam que não pode ter sido coincidência a Igreja escolher o fim do século XI para seu ataque: nesse momento o Islã estava particularmente fragmentado, e portanto especialmente vulnerável. "Quando os cruzados começaram a chegar à Síria, à Palestina e ao Egito, os habitantes dessas regiões não tinham a menor idéia do que estava acontecendo. Sua única certeza era que não haviam feito nada que pudesse ser entendido como provocação", defende Carole Hillenbrand.


A imaginação de escritores românticos como Sir Walter Scott (1771-1832), autor de clássicos populares como O Talismã e Ivanhoé, também fez muito por cimentar a imagem de uma civilização superior submetida ao assédio de invasores bárbaros. O inglês Jonathan Riley-Smith lembra que nenhum lado era melhor do que o outro. Os cristãos cometeram atrocidades, mas não faltam exemplos de muçulmanos devolvendo-as na mesma moeda – como o fez o sultão as-Salih numa nova e sangrenta retomada de Jerusalém, em 1244. Riley-Smith defende que romances como os de Walter Scott não se entranharam apenas no inconsciente ocidental: eles contaminaram a própria Academia. O exemplo mais claro – e tremendamente influente – é o do também inglês Steven Runciman, cujos livros, publicados pela primeira vez na década de 50, permanecem como os trabalhos históricos recordistas em vendas na Inglaterra. É de Runciman, em boa parte, que se herdou a imagem do cruzado como um matuto ignorante, sem terra, fortuna ou algo útil com que ocupar seu tempo, que partia para a Terra Santa atrás de aventura, butim e brutalidade livre de punição.


De mais ou menos duas décadas para cá, entretanto, o estudo das Cruzadas trouxe à tona dados novos, que derrubam esses estereótipos. O levantamento demográfico e econômico dos cavaleiros que assumiam a cruz demonstra que a imensa maioria era de senhores com terra e com fortuna, que não raro se arruinavam para marchar rumo a Jerusalém. A maioria voltava de mãos vazias, e freqüentemente encontrava suas posses européias em desordem devido à ausência prolongada e às grandes quantias sacrificadas para a expedição. Claro que havia entre eles arruaceiros, como atestam os relatos de cavaleiros que se gabavam de ter cavalgado com sangue muçulmano até os joelhos. Alguns dos bandos de cruzados aproveitavam para pilhar e destruir tudo o que houvesse pelo caminho. É célebre, por exemplo, o caso de um grupo saído do que hoje é a Alemanha, ainda na Primeira Cruzada (1095-1099), que trucidou centenas de judeus às margens do Rio Reno. Também houve casos de cavaleiros que fizeram fortuna no Oriente. Mas foram poucos.


Pouca fortuna a ser amealhada, e pouca gente com vontade ou meios de se radicar nos territórios do Oriente. Esses dois dados, sozinhos, bastam para tirar a credibilidade da visão, propagada nos anos 60 e 70, de que as Cruzadas foram um empreendimento protocolonialista. Houve, de fato, um pequeno movimento colonial rumo ao Reino Latino de Jerusalém, de pessoas que aproveitaram a trilha aberta pelos cruzados. À época de sua expulsão, em 1291, essa gente estava quase toda imersa na cultura local e prestes a se tornar parte dela – incluídos aí desde agricultores até a família real de Jerusalém. Nada, portanto, parecido com o colonialismo do século XIX, em que a exportação de valores culturais e ideológicos era parte do mesmo esforço da anexação territorial.


Do ponto de vista militar, uma cruzada era uma aventura curiosa, sem cadeia de comando definida ou alvos estratégicos claros. Esse improviso não causava grande impressão entre os muçulmanos. Talvez por isso o Islã nunca tenha enxergado nas Cruzadas o equivalente cristão da jihad. Tudo o que eles viam eram bandos desordenados de invasores, falando de uma religião que não lhes apetecia. Se uma coisa não mudou nos séculos desde então é que o Islã, para seus seguidores, é a Revelação perfeita e definitiva. Os muçulmanos achavam que havia coisas a aprender com civilizações como a chinesa ou a indiana, mas certamente não com a européia. A Europa, aos olhos deles, era uma terra envolta em bruma, no sentido literal e metafórico. Para os muçulmanos que não foram diretamente atingidos pelas Cruzadas, então, elas permaneceram como uma perturbação menor nas bordas de seu império. Pelo menos até que os mongóis chegassem com seu apetite incomparável para a conquista: um invasor foi somado ao outro na imaginação árabe do período, e todos foram rejeitados como intrusos violentos e indesejáveis.


Muitas indagações e hipóteses já foram formuladas na tentativa de explicar por que, afinal, Leste e Oeste não se entendem. Geralmente, porém, quando se faz a pergunta errada tem-se uma resposta incorreta. Exemplo: em 1993, o americano Samuel Huntington, especialista em estudos internacionais na Universidade Harvard, escreveu um texto de imenso impacto – e muito polêmico –, no qual argumentava que muitos dos conflitos entre nações são, na verdade, um "choque de civilizações". A tese de Huntington, em resumo, é que o Leste e o Oeste vivem sob sistemas de valores totalmente diversos, e que esses valores são o produto de séculos – muito mais significativos, portanto, do que visões divergentes acerca de ideologias ou regimes políticos. À primeira (e rápida) vista, o pensamento do americano parece sagaz. Mas, numa inspeção mais profunda, ele ressurge como mais uma expressão daquilo que o intelectual palestino Edward Said descreveu em 1978, num livro-marco de mesmo nome, como "orientalismo": a distinção imaginária entre Ocidente e Oriente, em termos geográficos, culturais, morais e intelectuais.


O orientalismo leva à crença de que o mundo é dividido entre "nós" e "eles", e que "eles" são essencialmente diferentes – e, por extensão, inferiores, passíveis de dominação e iluminação por "nós". Mas o cristianismo, o islamismo e o judaísmo são hoje religiões globalizadas, cujos seguidores se mostram capazes de conviver de forma pacífica e proveitosa em vários pontos do planeta. Na verdade, acrescenta a historiadora Carole Hillenbrand, nem na Europa do século XI essa distinção faria sentido. Entre o século VIII e o XV, os mouros criaram na Península Ibérica um exemplo não livre de tensão, mas ainda assim florescente, daquilo que o contato entre as civilizações pode produzir: o reino de al-Andalus, que legou para o presente bem mais do que as maravilhas arquitetônicas de Granada, Sevilha e Córdoba, o sabor do gaspacho ou a música e a dança flamencas. Foi por meio da convivência entre muçulmanos, cristãos e judeus em al-Andalus, também, que fincaram pé no continente tradições das quais ninguém sonharia abrir mão, como a diplomacia, a tolerância religiosa, o livre-comércio e a pesquisa acadêmica e científica. Se o mundo medieval foi capaz de 800 anos de relativa harmonia, não há desculpa para que o mundo moderno não se empenhe em restabelecê-la.





O HERÓI DE TODOS


As Cruzadas produziram inúmeras discórdias, mas também uma unanimidade: o sultão Saladino (1138-1193), que, ao tomar Jerusalém, em 1187, concordou em deixar sair da cidade todos os cristãos que pagassem um pequeno resgate. Não só cumpriu a promessa, como dispensou centenas de indultos a pobres, idosos, mulheres e escravos. A admiração ocidental por Saladino (na foto, interpretado por Ghassan Massoud) se converteu em quase-adoração quando, na Terceira Cruzada, ele encontrou em Ricardo I um oponente à altura de seu carisma e cavalheirismo (mas não de sua força militar). Nascido em Tikrit, atual Iraque, o sultão não particularmente devoto tornou-se herói no Oriente por ter unificado as forças muçulmanas. No Ocidente, virou o símbolo da sofisticação do Islã, posto do qual governaria a imaginação européia pelos séculos seguintes.